A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - Parte 3

Por Professora Ethel Leonor Noia Maciel - Epidemiologista em doenças infecciosas

Começo esse artigo com uma reflexão: pode uma data comemorativa nacional se transformar na maior tragédia anunciada? A resposta iremos descobrir. Daqui a duas semanas, no segundo domingo de maio, será comemorado o Dia das Mães, segunda data mais importante para o comércio. Já houve um tempo, contam alguns, em que esse dia era celebrado ao redor de mesas fartas, algumas nem tanto, para se comemorar a vida e os afetos. Porém, ao longo dos anos, esse dia se transformou em presentes como substituição ou complementação de afetos. Na minha opinião, mediante o atual cenário, travaremos a maior batalha entre a vida e a morte, caso ocorra a abertura dos estabelecimentos comerciais considerados como não essenciais.  

O mês de abril vai vagarosamente nos deixando com algumas faturas muito altas: um número de mortes expressivo, perdas irreparáveis e famílias destruídas. Descobrimos atônitos que um vírus é capaz de muitas coisas, dentre elas, nos mostrar nossa fragilidade como indivíduos e como sociedade. Nossos valores, costumes, hábitos, comportamentos são colocados à prova todos os dias em nossas relações, em tempos de quarentena.

Conseguimos desacelerar a curva epidêmica, mas é importante pontuar, como chegamos até aqui. Importante lembrar que os primeiros casos da Covid-19 no Brasil e no ES foram introduzidos por pessoas que retornaram de viagens internacionais, vindas de locais onde o vírus já estava presente e, portanto, com transmissão ativa da doença. Sem protocolos específicos na chegada, ao desembarque, o Brasil e o ES receberam os primeiros infectados em fevereiro. O vírus, portanto, chega ao país por meio das classes A e B, de pessoas vindas do exterior. Computa-se a esse fato a demora em fechar nossas fronteiras e ter um protocolo mais rigoroso na chegada, como nosso primeiro erro estratégico. Essas pessoas infectadas e doentes, em sua maioria, usuárias de planos de saúde, tiveram seu acesso garantido e seu cuidado prestado pelos serviços privados. No entanto, com o passar dos dias e a intensa mobilidade entre pessoas que residem em comunidades nas periferias da cidade para prestarem serviços nos bairros considerados mais nobres, e onde haviam registros dos primeiros casos, a doença encontra outros portadores.

Em comunidades carentes, com pessoas dependentes exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), sistema esse, já espoliado, com falta de recursos de infraestrutura, financeiros e humanos, dois atores se encontram nesse drama pandêmico, quais sejam: pessoas desprovidas de bens materiais, educacionais e emocionais; e o nosso SUS, adoecido. Ou seja, de um lado, os menos abastados das condições básicas para sua proteção encontram-se mais vulneráveis ao vírus, devido ao nível de exposição na busca de auxílios e renda e à ausência de políticas públicas e sociais eficazes. E, do outro, essas mesmas pessoas são cada vez mais dependentes do SUS, de sua capacidade de atendimento e de leitos nas UTIs para o tratamento diante da pandemia. Infelizmente, a precarização da capacidade do SUS coincidiu com a priorização aos mecanismos do mercado no setor, pois criou obstáculos para  ampliação e melhorias no sistema de saúde público, impactando desfavoravelmente no atendimento das pessoas que dependem desse atendimento, agravado em tempos de pandemia.  Nesse sentido, a realidade atual desvela que não só as pessoas estão necessitando de recuperação.

Nossa maior preocupação como epidemiologistas, neste momento, é a preservação de vidas. Sabemos que se a epidemia atingir comunidades populosas que não consigam fazer um isolamento ou distanciamento de outros membros da família de forma satisfatória, muitas vidas poderão ser perdidas. Podemos considerar pela ocupação dos leitos que até o momento aqui no ES, tivemos mais utilização do sistema privado que do público, lembrando que esse primeiro atende a um número, pelo menos 3 vezes menor de pessoas. A desaceleração da curva nesse momento, beneficiou as prestadoras de serviço dando tempo para que recebessem seus usuários satisfatoriamente. No entanto, uma diminuição do isolamento social, neste exato momento que a pandemia encontra populações vulneráveis, terá pelo menos três efeitos: 1) o colapso do SUS; 2) a compra de leitos do setor privado pelo setor público; e 3) a perda irreparável de vidas invisibilidades pela classe e pela raça/cor.

Abril também nos surpreende com uma inesperada Nota Técnica da Anvisa, dando possibilidades que farmácias realizem testes para detecção da COVID-19. Espantoso observar que, enquanto a falta de testes era associada à dificuldade de compra no mercado externo, essa escassez, nos parecia, como pesquisadores, justificada. Abrir o mercado e possibilitar desigualmente que pessoas tenham acesso à testagem, colabora para que os dados fiquem enviesados o que, consequentemente, compromete as conclusões que poderão advir desses resultados, deixando de tornar claro como a doença se comporta em uma classe específica no Brasil. Além disso, mas não menos importante, pode tornar tais locais insalubres e de alto risco, pois não são ambientes  preparados para esse tipo de testagem, sendo portanto, sujeito a propagar a doença entre trabalhadores e usuários do serviço.

É importante frisar que neste momento, a única estratégia de saúde pública é o isolamento social. Adotar todas as formas para se proteger, tem sido nossa maior arma. Mas como garantir proteção para aqueles que precisam enfrentar todos os dias um transporte público saturado, baixos salários e pouca condição de moradia? Como evitar aglomerações, se sua vida é cercada de filas, locais pouco ventilados e transportes lotados? Como garantir álcool gel na sua bolsa, se não há dinheiro suficiente para a alimentação e habitação de todo mês? Como abrir o comércio para que os trabalhadores e trabalhadoras voltem aos seus postos de trabalhos sem a abertura de creches e escolas, onde deixariam suas filhas e seus filhos? Se cogitaria a ideia de deixar as crianças com seus avós e avôs, segmento tão vulnerável ao vírus? Como a única arma que nós temos, o isolamento social, ainda é uma barreira impossível de romper? Quando a única arma que temos para salvar vidas não está ao alcance de todos de forma igualitária, a tragédia tem seu enredo formatado.

Nossa meta com o isolamento social é desacelerar a contaminação e evitar o aumento exponencial do número de pessoas que possam precisar do serviço de saúde, garantindo que quem precise tenha atendimento de forma digna e tenha sua vida preservada. É uma meta maravilhosa, que me faz acordar todos os dias e lutar. Mas analiso os dados e eles me falam, que assim como o SUS com o qual sonhei, não é real ainda. Poderemos ofertar dignamente o cuidado na velocidade com que as pessoas adoecerão e morrerão, se a compra de presentes para um feriado nacional for priorizada?

Neste inimaginável momento histórico nacional e mundial, eu convido a todas e todos para uma nova campanha: Ajude a salvar vidas! Ajude o SUS! Nesse Dia das Mães oferte o melhor presente do mundo: a possibilidade de se manter vivo, de mantê-la viva e manter viva a comunidade ao seu redor. Ao invés de espalhar o vírus, espalhe a possibilidade de escrevermos uma história que tenha um final mais feliz para você e para todos aqueles que estão a sua volta.
 

Leia também os artigos anteriores desta série:
A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus 
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 2

Publicado em 30 de Abril de 2020.

Imagem ilustrativa: Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São Paulo

 

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