A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus - parte 5

Por Professora Ethel Leonor Noia Maciel*

Onde estamos falhando? Darei o nome fictício de Polis ao município que usarei como exemplo para nos ajudar a responder essa pergunta. Entretanto, informo que são dados reais de uma localidade do Espírito Santo. O caso de Polis, aqui neste texto, deve ser compreendido como possível em qualquer município ou região do país. A escolha desse exemplo é pelo fato de que há elementos que podem lançar luz às nossas inquietações.

Recebi um telefonema no meio da tarde de uma repórter, e a pergunta era: por que em Polis se morria tanto? Conversamos um pouco, mas a pergunta me tirou o sono. Enquanto eu investigava os dados de Polis, mais eu me convencia de que poderíamos ter feito diferente.

Pontuo que Polis não é um caso isolado. Nesse momento, há vários locais experenciando as mesmas situações desta cidade, seja no Brasil, seja mundo afora. A única diferença é que Polis, por estar próxima, reúne elementos mais visíveis para nossa compreensão.

A Epidemiologia é uma ciência investigativa. O que me fascina enveredar pelo estudo da Epidemiologia é o fato de que, por meio da investigação e da observação dos fenômenos, as pessoas podem extrair informações valiosas, as quais podem, de fato, mudar o mundo. Foi assim que John Snow, médico inglês, considerado o pai da Epidemiologia, com papel, lápis e muita sagacidade, desenhou um mapa, conseguindo localizar onde moravam as pessoas que adoeciam e morriam de cólera na Londres de 1844. Sem conhecer a teoria dos micróbios, sem ter acesso a nenhum medicamento ou vacina, ele fazia as clássicas perguntas da Epidemiologia: 1) O que as pessoas que adoeceram e morreram tinham em comum?; e 2) Em que elas diferem das que sobreviveram? Ainda hoje, essas duas perguntas fazem parte da Epidemiologia básica, que eu ensino no segundo período do curso de Enfermagem. O que podem fazer por nós em tempos atuais? O caso de Polis vai me ajudar a ilustrar isso.

Recorrerei também a outra personalidade histórica para me ajudar a elucidar esse caso: é Florence Nightingale, enfermeira e estatística, considerada a precursora da Enfermagem. Florence teve um papel fundamental para a reforma das “Leis dos Pobres”, estendendo o papel do Estado para muito além do fornecimento de tratamento hospitalar. Seu ativismo foi em resposta à morte de um “mendigo” (hoje, pessoa em situação de rua) na enfermaria em Londres. Ela não poderia supor que em 2020, quase 200 anos depois, estaríamos aqui, lutando pelos mesmos ideais: uma saúde digna para todos. Outro ponto, que gostaria de destacar de sua história, foi durante a epidemia de febre tifoide, na guerra da Crimeia, quando ela lançou as bases para o controle de doenças como fazemos hoje: separar os sintomáticos dos assintomáticos e cuidar de medidas sanitárias.

John Snow e Florence Nightingale têm em comum a paixão pela investigação e por nos deixar como legado que, em situações onde não haja medicamentos e nem vacinas, o conhecimento científico organizado ainda pode nos salvar.

Quando eu fazia parte da minha formação em Epidemiologia na Johns Hopkins University, em 2006, conheci um importante estudioso o qual chamávamos de lenda viva: Dr. George W. Comstock, um dos responsáveis pela pesquisa da vacina do BCG, vacina contra o Mycobacterium tuberculosis, e de tantos outros feitos para o controle da tuberculose no mundo. Participei da última turma a que ele lecionou, morreu no ano seguinte. Suas aulas eram famosas, em uma delas, a qual lembro com nitidez, ele apresentou o gráfico de um artigo sobre a busca de contatos de pacientes com tuberculose na África. Em apenas um gráfico ele discorreu por uma hora sobre a história por trás dos números. Lembro-me da sensação de perplexidade que me envolveu, semelhante àquela de quando vamos ao museu e um especialista em artes discorre por 30 minutos sobre um quadro, no qual só vemos rabiscos. É essa mesma capacidade para ver através do quadro ou da cena apresentada.

Quando comecei a investigar Polis, a cidade tinha seis mortes. Aos olhos desavisados pode parecer um número pequeno, mas a cidade tem pouco mais de 17 mil habitantes. Como Epidemiologista, conhecemos o problema das pequenas áreas, dos números pequenos que dão grandes flutuações aleatórias nas taxas, mas ainda assim, essas mortes têm muito a nos dizer. Das seis, duas abaixo de 50 anos, quatro pardos, cinco dependentes do Sistema Único de Saúde. Olhando mais atentamente, duas ocorreram na mesma residência, as outras em endereços que guardam uma distância de 600 metros. Essa última informação me deixou perplexa. Esses dados nos falam muitas coisas. Falam da dificuldade de acesso ao serviço de saúde, falam das desigualdades sociais, falam de mortes que não precisavam estar ali. Onde estamos errando?

Listo três pistas para o nosso entendimento. A velocidade do vírus, nossa velocidade de resposta e a realidade que bate a nossa porta. O vírus se propaga a uma velocidade na qual não estamos adaptados. As outras doenças infecciosas (as que não têm vacina) têm velocidade de contágio inferior. Há três semanas, na reunião com gestores do governo, discutimos a necessidade de ter oxímetros para as equipes da atenção primária monitorarem piora de quadros respiratórios, esses equipamentos ainda não estão disponíveis para as equipes de saúde, e portanto, a orientação “Vá para casa e volte se tiver dificuldade respiratória” pode ser uma sentença de morte para um grupo de pessoas mais vulneráveis, do ponto de vista socioeconômico. Há duas semanas, discutíamos com base em estudos de tuberculose, doença com a mesma via de transmissão. Se aprendêssemos com a tuberculose e usássemos as lições aprendidas, deveríamos investigar em um raio de 2000 metros para buscar e isolar contatos. Foi proposto um fluxograma para equipes de saúde da família e equipe de voluntários em comunidade. Há uma semana esse fluxograma foi reapresentado na tentativa de entrarmos em comunidades mais carentes com voluntários e agentes de saúde para busca ativa dos casos da COVID-19 e que esses profissionais e voluntários deveriam ter um termômetro de mão para verificar a febre e tentar isolar casos antes mesmo de algumas pessoas se identificarem como doentes. Infelizmente, nessa pandemia ainda não conseguimos, em alguns locais, o que Florence conseguiu no século 19: uma casa de apoio, hospital de campanha ou outro local digno para isolar aqueles que “não podem voltar para casa”, pois não há condições de isolamento. Uma atenção primaria à saúde atuante e com ampla cobertura, e que atue na prevenção dos casos, se faz imprescindível neste momento.

John Snow e Florence Nightingale, de onde estiverem, certamente olharão para esses dois últimos séculos e pensarão que o que fizeram foi em vão. Estamos aqui para dizer do nosso agradecimento pelo legado deixado por eles e para continuar na luta. O quadro apresentado, no qual os dados nos dizem muito, indica que precisamos fazer mais, que precisamos fazer muito mais para salvar vidas. É preciso que estejamos à frente do vírus, e não apenas respondendo reativamente a ele. É preciso que as armas que temos sejam melhor aproveitadas e, fundamentalmente, é preciso que nossa velocidade de resposta seja mais rápida e mais eficiente. O quadro de Polis nos mostra que podemos discutir por horas a fio. O fato é que falhamos! A realidade bate à nossa porta e ela não traz consigo boas notícias. De fato, ela nos mostra nossos equívocos. E é urgente que possamos mudar ainda no curso dessa pandemia. Minha solidariedade a todas as famílias que perderam entes queridos e o nosso compromisso de seguir na linha de frente no combate com a arma que temos: a ciência!

Leia também os artigos anteriores desta série:
A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus 
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 2
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 3
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 4

*Professora Ethel Leonor Noia Maciel é epidemiologista em doenças infecciosas do Departamento de Enfermagem da Ufes. É uma das responsáveis pelo Laboratório de Epidemiologia do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Ufes.

Foto: Heudes Regis /SEI Pernambuco

Publicado em 18 de Maio de 2020.

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