A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus - parte 6

Por Professora Ethel Leonor Noia Maciel*

Ensaiei esse início algumas vezes, mas nada estava à altura do que precisava ser dito. Acordo com a mensagem do meu aluno: “Eu estou apavorado... Não para de aparecer casos... UTI lotada... Asilo interditado... Presídio pipocando casos... E ainda estamos com risco baixo... Deus tenha misericórdia de nós!” 

Vi um Deus desconcertado nessa frase. As escolhas dos homens não podem recair sobre ele, eu teria dito. Recebo outra mensagem: “Professora... do lado da minha casa está acontecendo um culto... com banda e tudo... O líder religioso diz: existem outras doenças que matam mais que a COVID-19... o espírito de Deus vai nos salvar... não se preocupem.” E Deus novamente, ali, no meio da frase, justificando a barbárie. No mesmo dia, outro relato: “Fica cada dia mais difícil trabalhar na UPA (Unidade de Pronto Atendimento)... Todo dia são dois pacientes evoluindo para ventilação mecânica... Ontem foi um plantão totalmente estressante... Respiradores não funcionam... Uma correria louca... Vamos acabar adoecendo por estresse ou sobrecarga de trabalho... Já não estou tendo mais saúde mental.”

Outra aluna me informa de um hospital referência para a COVID-19: “Estou há 60 dias sem ver minha família... Minha mãe de 60 anos sente minha falta... Não posso voltar para casa... Aqui falta tudo... até medicamento para sedação... Estamos assim, professora... É muito triste...” 

Como todos sabem, para a professora, os alunos são eternos, eles já estão lá, cumprindo seu papel no mundo, mas na nossa memória afetiva, serão sempre os queridos alunos. Agora, jogados ao furacão para o qual queria tê-los preparado melhor. Mas nada poderia nos ter preparado para a avalanche que se aproxima. 

Aqui poderíamos discutir sob a luz da Filosofia ou Teologia por horas, mas eu sou epidemiologista, lido com números, fatos e ciência. Ou Deus ou alguém precisa nos ajudar. Fica a mensagem implícita e explicita nos relatos reais aqui narrados. Em situações limítrofes, alguém com poder terreno ou divino precisa vir ao auxílio da humanidade. Tem sido assim por séculos, mas a realidade mostra que não mudamos muito das pandemias que dizimaram grandes populações. Ainda continuamos com as mesmas falhas humanas, os mesmos medos e principalmente, os mesmos interesses, ainda que com novas roupagens.  

A Epidemiologia mostra o avanço da doença, os dados – ainda que incompletos – em evolução, dizem e informam que nossos temores no início de abril foram todos confirmados: profissionais sobrecarregados, serviços lotados, vidas perdidas.

No livro Crônica de uma morte anunciada, escrito por Gabriel García Márquez, o autor conta, na forma de uma reconstrução, o último dia de vida de Santiago, em uma sequência de superposição das versões de testemunhas que estiveram próximas ao protagonista. No livro, quase todos os habitantes do lugarejo onde vive Santiago ficam sabendo do homicídio premeditado algumas horas antes (por isso a morte é “anunciada”), mas não fazem nada de concreto para proteger a vítima ou impedir o assassinato. Ao ler o livro há um tempo atrás, recordo que me veio a indagação do porquê de ninguém ter feito nada. Do mesmo modo agora, diante da pandemia, observando com perplexidade a nossa realidade, faço a mesma indagação. A brilhante exposição do autor nos remete a pensar o “estado da arte” das vidas perdidas. Já não conseguimos acompanhar a contagem das vidas que se foram, já não podemos mais em poucas palavras reconstituir suas histórias. Temos apenas a sequência inequívoca dos fatos que se sobrepõem, em um enredo macabro, sem velório, sem flores, sem despedidas.  

A Epidemiologia nos revela que a pandemia evolui para os bairros vulneráveis. Temos dois caminhos sendo traçado pelo vírus, o dos infectados e o dos óbitos. Ainda que as curvas aumentem de forma acelerada, os infectados aumentam em uma parte das cidades e os mortos em outra. A curva epidêmica parece subir de forma semelhante, mas a realidade da desigualdade revela sua face. Tentei resumir em muitas frases, mas a que mais me parece real a cada dia é a de que a pobreza mata. Parece incompatível com a ciência, mas a pobreza mata lentamente, é uma doença social terrível. A pior de todos os tempos. Sem alimentos com nutrientes essenciais, sem acesso à água tratada, sem acesso à moradia digna, sem acesso a serviços de saúde em qualidade e quantidade.  A diferença agora é que, com a COVID-19, a precariedade dos mais vulneráveis foi evidenciada em seu maior nível, tornando-se letal.

A Nota Técnica 2 (publicada no site da Ufes) mostra que nossa velocidade de contágio está acelerando, o que chamamos de RT. Desde o início, estamos tentando nos adiantar ao vírus. Apesar dos esforços, o vírus tem se mostrado bem adaptado. Com o resultado do inquérito epidemiológico, nossas projeções mudaram um pouco, estamos muito mais no início do que pensávamos. É certo que precisaremos de um plano de convivência, mas também é certo que nesse momento, o fechamento das atividades que promovam qualquer aglomeração é vital para que possamos diminuir a velocidade de propagação da doença. Sem um medicamento efetivo ou sem uma vacina, talvez tenhamos que conviver com ciclos de fechamento e abertura, conforme já estamos vendo em outros países.  

Eu acredito na ciência, e cabe a nós decidirmos de que lado da história nos colocaremos. Quando tudo isso passar, não quero ser a pessoa que disse: eu avisei! Quero ser aquela que, no momento exato da tragédia, ousou dizer: é um erro não respeitar o isolamento e o distanciamento social. Em nenhum lugar do mundo, nada será mais importante que do que preservar e salvar vidas: parem os cultos e as missas, parem os esportes coletivos, as academias, os ônibus lotados, os locais de aglomeração. É importante, nesse momento, que tenhamos a consciência e a convicção de que não podemos delegar a outros a decisão de zelar por nossa própria existência. Existe uma única verdade: a morte não tem volta, todas as outras coisas podem esperar!

Leia também os artigos anteriores desta série:
A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus 
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 2
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 3
A Epidemiologia no enfrentamento à pandemia de coronavírus - parte 4
A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus - parte 5
 

*Professora Ethel Leonor Noia Maciel é epidemiologista em doenças infecciosas do Departamento de Enfermagem da Ufes. É uma das responsáveis pelo Laboratório de Epidemiologia do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Ufes.

Foto: Projeto Máscaras Solidárias de Alegre-ES / Ufes

Publicado em 26 de Maio de 2020.

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